Domingo, 4 junho de 2006
Jornal o Estado de São Paulo – Brasil.Como não mudar nada na política em 2 mil anos
Um manual de campanha eleitoral de 21 séculos atrás, feito para Cícero eleger-se cônsul, mostra que os marqueteiros de hoje não inventaram nada
Um pequeno panfleto de 2 mil anos atrás, escrito por um
administrador de província romana, traz para os eleitores brasileiros uma boa e
uma má notícia. A boa é que a política brasileira, com seus mensalões, acordões
e absolvições, não é de modo algum pior que as outras. A má é que, visto que
nada mudou nos últimos 21 séculos, não há razão para se achar que vai melhorar
daqui para a frente.
O texto em questão é o Comentariolum Peticionis - em bom
português, Breve Manual de Campanha Eleitoral e Marketing Político. Escreveu-o, em 64 a . C., Quinto Túlio Cícero,
para seu irmão famoso, o orador Marco Túlio Cícero, que naquele ano decidiu
candidatar-se a cônsul, uma espécie de magistrado supremo do Senado romano. Não
sendo da nobreza, Cícero queria convencê-la a votar nele, mas ao mesmo tempo
precisava manter seu prestígio com o povo.
O manual é um espantoso retrato de como as coisas nada
mudaram, ao longo de 2 mil anos. "Põe em tua cabeça que tens de fingir o
que não tens de natureza", aconselhava Quinto ao irmão, "de modo que
pareças atuar de modo natural." "Isso é imprescindível a um
candidato, cujo semblante, rosto e palavras deverão mudar e adaptar-se ao
sentimento e à vontade de quem seja com quem se encontre."
Quinto dividiu seus conselhos em 58 pontos, nos quais
adverte o irmão sobre como e o que falar com as pessoas, a quais grupos
agradar, o que não dizer, como explorar os defeitos dos rivais. "É mais
importante ser um bom candidato do que uma boa pessoa", ensina ele. Sua
primeira sugestão: Cícero devia ir todos os dias, já de manhã, para o Fórum, no
centro de Roma, para a "prensatio" - o aperto de mão. Exatamente como
hoje, eram intermináveis sessões de sorrisos e afagos, dirigidos não só aos
conhecidos, mas a qualquer um que aparecesse. Uma boa assessoria deveria
providenciar visitas importantes à sua casa e platéias para os discursos, além
de um "nomenclator", o providencial assessor que lhe assopra no
ouvido os nomes das figuras importantes que estão por perto. Para destacar-se
na multidão, deveria usar sempre uma túnica bem branca, a chamada "toga
candida". De tanto usar essas vestes os caçadores de voto romanos foram
chamados de candidatos.
COMPRA DE VOTOS
Não há indícios, nos conselhos de Quinto, de que seu irmão
tivesse um Delúbio ou Valério - mas era comum, já naquela Roma de Júlio César e
Pompeu, recorrer a tais figuras. Elas tinham até um nome: eram os divisores, os
tesoureiros de campanha, assim chamados porque dividiam o dinheiro em troca dos
votos. Quando se faziam tais acordos, o suborno era deixado, até a eleição, com
um intermediário, o "sequestre".
Quinto pede, no texto, que Cícero evite as discussões e
definições políticas, "de modo que o Senado creia que serás um defensor de
sua autoridade; e a multidão, que não te oporás aos seus interesses".
Compromissos partidários sérios, nem pensar: era preciso dar tratamentos
diferentes aos dois principais grupos políticos da época, os
"optimates" (da nobreza) e os "populares" (das classes
média e baixa). Como os nobres não engoliam o sistema republicano então
vigente, Quinto aconselha: "Deves convencê-los de que nós sempre tivemos
os mesmos sentimentos (deles), em relação à república e que em absoluto temos
sido populares; e que, se alguma vez nos viram falar como populares, o fizemos
com a intenção apenas de atrair (o poderoso general ) Pompeu."
Por fim, era indispensável bater duro nos concorrentes.
"Dos rivais, Antônio e Catilina, (...) deves lembrar que são assassinos
desde a infância e depravados os dois." Um deles "comprou no mercado
de escravos uma amiguinha para tê-la em casa, abertamente".
Com muita ou pouca ajuda do manual, Cícero foi eleito,
dividindo o consulado com o rival Gaio Antônio. Seu ano como cônsul, em 63 a .C., entrou para a
história. Foi nesse cargo que, em discursos memoráveis, denunciou uma grave
conspiração comandada por outro rival: Catilina. Seu furor foi tal que, já na
manhã seguinte ao primeiro discurso - ele fez quatro -, Catilina fugiu de Roma
e, comandando uma rebelião, morreu meses depois.
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